29 out Despacho/Decisão Ação Civil Pública. Retorno das aulas no Estado de Santa Catarina
Poder Judiciário
JUSTIÇA ESTADUAL
Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina
2ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Florianópolis
Despacho-Decisão retorno das aulas SC
DESPACHO/DECISÃO
Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Sindicato estadual das Escolas Particulares (SINEPE/SC) em face do Estado de Santa Catarina, em que requer:
I) in limine, a suspensão da eficácia da Portaria SES 769/20, normativo que independentemente de “evidências científicas” e de “prévia avaliação do COE” quanto ao impacto da comunidade escolar no resultado da matriz de risco, impõe a adoção de quarentena das atividades de ensino quando as medidas apontarem níveis gravíssimo ou
grave;
II) in limine, a suspensão da eficácia das Portarias SES 592/20, SED/SES 612/20, 750/20, 769/20 e 778/20, normativos que condicionam o exercício da atividade de ensino à matriz de risco instituída pela Portaria SES 592/20;
[…]
IV) in limine, reconhecendo que inexistem “evidências científicas” de que a quarentena das atividades de ensino impacte na propagação do vírus, a autorização para que as instituições privadas de ensino exerçam os seus objetos sociais, especialmente a educação de nível básico (i.e.infantil, fundamental e médio), condicionado o desenvolvimento à observância das condições estabelecidas nos arts. 2º e 3º da Portaria SES 352/20 ou nos incisos II a VII do art. 2º e art. 3º da Portaria SES 447/20;
V) in limine, reconhecendo o direito das instituições de ensino ao mesmo tratamento concedido às pessoas jurídicas dedicadas à educação cultural (i.e. dança, natação, música, luta etc.), a autorização para exercício da atividade educacional, principalmente a de nível básico (i.e.infantil, fundamental e médio), condicionado o desenvolvimento à observância das condições estabelecidas nos arts. 2º e 3º da Portaria SES 352/20 ou nos incisos II a VII do art. 2º e art. 3º da Portaria SES 447/20; (evento 13/1, p. 2-3).
O Estado de Santa Catarina apresentou manifestação preliminar (evento 23).
Os autos vieram conclusos. Decido.
Da preliminar de ausência de interesse processual
Suscita o Estado de Santa Catarina que a parte autora carece de interesse processual “[…] pela falta de impugnação concreta em relação à alegada “falta de motivação” na edição dos atos normativos supracitados” (evento 23/1, p. 4).
O interesse processual, ancorado no binômio adequação-necessidade, deve ter sua existência aferida de modo abstrato (teoria da asserção) e sem qualquer vinculação com o direito material em discussão.
Como afirma Luiz Guilherme Marinoni, “o interesse de agir decorre da
necessidade de obter através do processo a proteção do interesse substancial; pressupõe, por isso, a assertiva de lesão desse interesse e a aptidão do provimento pedido a protegê-lo e satisfazê-lo” (Curso do processo civil: teoria geral do processo. v. 1. 5. ed. rev. e atual. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 176).
Do mesmo modo, assinala Fredie Didier Jr.:
“‘Deve o juiz raciocinar admitindo, provisoriamente, e, por hipótese, que todas as afirmações do autor são verdadeiras, para que se possa verificar se estão presentes as condições da ação’. ‘O que importa é a afirmação do autor, e não a correspondência entre a afirmação e a
realidade, que já seria problema de mérito”. (Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17 ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015, p. 365).
Com isso, a matéria ventilada abrange questão eminentemente afeta ao mérito e que, por isso, não guarda relação com a condição da ação em apreço.
Doutro lado, a manifestação preliminar apresentada pelo Estado de Santa Catarina, por si só, evidencia uma resistência à pretensão deduzida pela parte autora, configurando, portanto, o interesse processual.
Rejeita-se, portanto, a prefacial de falta de interesse processual.
Do pedido de tutela provisória
Afirma o SINEPE/SC que o Estado de Santa Catarina, diante da pandemia de Covid-19, instituiu medidas que vedam a realização de atividades presenciais de ensino na educação básica. Sustenta que as ações estatais estão despidas de justificativa técnicocientífica capaz de reduzir a propagação do vírus. Argumenta que outras atividades com o
mesmo público específico – crianças e adolescentes – têm o seu funcionamento permitido, situação que ofende o direito de liberdade de exercício da atividade econômica.
Propugna, assim, pela suspensão liminar dos atos normativos que impedem o exercício das atividades presenciais de ensino.
Com efeito, o art. 12 da Lei n. 7.347/1985 estipula que o magistrado poderá conceder liminarmente a medida reclamada, precedido ou não de justificação prévia, em decisão sujeita ao recurso de agravo de instrumento.
Por sua vez, o Código de Processo Civil, em aplicação complementar (Lei n. 7.347/1985, art. 19), estabelece que a concessão da tutela de urgência exige o preenchimento dos requisitos previstos no art. 300, caput, e § 3º, do CPC: a) probabilidade do direito; b) perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo; e c) reversibilidade dos efeitos da decisão.
Na situação dos autos, observa-se que a matéria de fundo envolve o art. 196 da Constituição Federal (CF), cujo texto é repetido pelo art. 153 da Constituição Estadual, e que assegura que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
A seu turno, o art. 178 da CF consigna que “são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle”.
Com isso, forçoso reconhecer a saúde como um direito fundamental e, por conseguinte, como uma norma constitucional, pois está diretamente atrelada à dignidade da pessoa humana erigida como fundamento da República (CF, art. 1º, III).
Segundo George Marmelstein, os direitos fundamentais “[…] possuem a
natureza de norma constitucional. Eles correspondem aos valores mais básicos e mais importantes, escolhidos pelo povo (poder constituinte), que seriam dignos de uma proteção normativa privilegiada. Eles são (perdoem a tautologia) fundamentais porque são tão necessários para a garantia da dignidade dos seres humanos que são inegociáveis no jogo
político” (Curso de direitos fundamentais. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2019, p. 258).
Nessas circunstâncias, compete ao Poder Público empreender ações para disponibilizar atendimento e tratamento de saúde e, também, atuar na prevenção da difusão de moléstias, tudo para para propiciar o bem-estar da população. Trata-se de postulado constitucional voltado à prestações positivas para o resguardo do direito à vida e à integridade
física.
Para Ingo Wolfgang Sarlet,
Com efeito, a despeito do reconhecimento de certos efeitos decorrentes da dignidade da pessoa humana mesmo após a sua morte, o fato é que a dignidade é, essencialmente, expressão e condição da própria humanidade da pessoa. A vida (e o direito à vida) assume, no âmbito
desta perspectiva, a condição de verdadeiro direito a ter direitos, constituindo, além disso, precondição da própria dignidade da pessoa humana. Para além da vinculação com o direito à vida, o direito à saúde (aqui considerado num sentido amplo) encontra-se umbilicalmente
atrelado à proteção da integridade física (corporal e psicológica) do ser humano, igualmente posições jurídicas de fundamentalidade indiscutível. (A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 344).
Nesse panorama, distingue-se que as medidas sanitárias previstas no art. 3º da Lei n. 13.979/2020 atendem ao critério da legalidade, pois o direito à saúde é dotado de especial relevância e importância frente aos demais direitos fundamentais também consagrados pela Constituição Federal.
Doutro lado, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 672, reconheceu a existência de competência concorrente entre a União, Estados, Municípios e Distrito Federal para disporem sobre as medidas necessárias para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus. A certidão de julgamento contém a seguinte redação:
O Tribunal, por unanimidade, confirmou a medida cautelar e, no mérito, julgou parcialmente procedente a arguição de descumprimento de preceito fundamental para assegurar a efetiva observância dos artigos 23, II e IX; 24, XII; 30, II e 198, todos da Constituição Federal na aplicação da Lei 13.979/20 e dispositivos conexos, reconhecendo e assegurando o exercício da competência concorrente dos Estados, Distrito Federal e Municípios, cada qual no exercício de suas atribuições e no âmbito de seus respectivos territórios, para a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia, tais como, a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outras, sem prejuízo da competência geral da União para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário, ressaltando-se, como feito na concessão da medida liminar, que a validade formal e material de cada ato normativo específico estadual, distrital ou municipal poderá ser analisada individualmente, nos termos do voto do Relator. (ADPF n. 672, rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 9.10.2020).
Portanto, em conformidade com a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, a instituição de medidas restritivas de combate à pandemia de Covid-19 pelos entes federativos tem respaldo jurídico-constitucional.
Por outro viés, ressai como fato notório que, até pouco tempo, não existiam estudos científicos avançados acerca da forma de contaminação dos seres humanos pelo vírus da Covid-19. Havia uma única certeza: a progressão do contágio ocorria de modo geométrico em todo o mundo, provocando milhares de óbitos.
Diante disso, e, sobretudo, pela escassez de informações científicas
disponíveis, havia um risco concreto e real de colapso dos sistemas público e privado de saúde, com insuficiência de estrutura hospitalar mínima para o tratamento de pacientes e falta de insumos.
Logo, no início da pandemia era crucial a adoção de medidas sanitárias
restritivas de maior gravidade, até porque, naquele momento, reinava incerteza sobre a forma de contágio. A urgência da situação de calamidade pública exigia medidas imediatas para a desaceleração da contaminação como forma de preparar os sistemas público e privado de saúde para o atendimento da população.
Como ponderou Gilmar Mendes, “de fato, a Administração Pública precisa agir rapidamente, o que muitas vezes pode levar a ações pouco usuais e até mesmo questionáveis do ponto de vista estrito da lei e da Constituição Federal. Em verdade, essas situações provavelmente se multiplicarão, conforme exemplos recentes. No grande esforço de se
combater a epidemia e seus efeitos, severas medidas de restrição de circulação de pessoas e de funcionamento do comércio foram tomadas por governadores e prefeitos de todo o país”
MENDES, Gilmar. Jurisprudência de crise e pensamento do possível: caminhos constitucionais. Consultor Jurídico, [S. l.], 11 abr. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr11/observatorio-constitucional-jurisprudencia-crisepensamento-possivel-caminhos-solucoes-constitucionais>. Acesso em: 20 out. 2020..
A atuação estatal, naquele momento, era norteada pelo princípio da precaução, implicitamente consagrado no art. 200 da Constituição Federal. Acerca do princípio da precaução, leciona Marga Inge Barth Tessler:
[…] o princípio de precaução significa que se há de agir antecipadamente frente a uma dupla fonte, a incerteza que é a ausência de conhecimento científico e o próprio perigo conhecido.
Não é só exortação à tomada de cautela, mas significa a necessidade de prática de ações,ncomo, por exemplo, pesquisas ou até medidas extremas como barreiras alfandegárias ou adestruição de produtos diante de ameaça de danos sérios e irreversíveis. […] A saúde é um
campo em que o risco é onipresente. Há comportamentos e estilos de vida arriscados. Os procedimentos médicos e terapias envolvem riscos e efeitos colaterais. O princípio da precaução tem como objetivo preservar os benefícios do desenvolvimento científico, agindo
antecipadamente no sentido de assegurar a saúde pública. (TESSLER, Marga Inge Barth. As recomendações do Conselho Nacional de Justiça em face das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 42, jun. 2011. Disponívelem<https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao042/marga_tessler.html> Acesso em: 19 out. 2020).
Todavia, desde o mês de março, quando a pandemia aportou neste Estado, houve sensível modificação daquele cenário fático.
Veja-se que as medidas restritivas inicialmente decretadas pelo Decreto estadualn. 515/2020, que proibiam a circulação de veículos de transporte coletivo urbano municipal, intermunicipal e interestadual de passageiros, as atividades e os serviços privados não essenciais, a exemplo de academias, shopping centers, restaurantes e comércio em geral, entre outros, foram revistas e adequadas à nova situação.
Com isso, a partir da edição do Decreto estadual n. 562/2020, com as alterações promovidas pelos Decretos estaduais ns. 587/2020, 719/2020, 740/2020 e 762/2020, diversas atividades econômicas voltaram a ser permitidas, algumas com limitações.
Essa modificação do regramento estadual sanitário decorre da expressiva redução da média móvel de casos diários e do número de pacientes internados em unidades de terapia intensiva no Estado, assim como a diminuição do número diário de óbitos, conforme consta nas planilhas compiladas na ferramenta de business intelligence (BI)
disponibilizada no site do Governo do Estado (Disponível em:
<http://www.coronavirus.sc.gov.br/>. Acesso em: 20 out. 2020).
Além disso, as informações do Ministério da Saúde apontam que Santa Catarina apresenta a segunda menor taxa de mortalidade por Covid-19 do País – 44,1 para cada 100 mil habitantes (Disponível em: <https://covid.saude.gov.br/>. Acesso em: 19 out. 2020).
De se ver, assim, que as medidas restritivas inicialmente implantadas pelos órgãos técnicos de saúde do Estado de Santa Catarina alcançaram a finalidade a que se destinavam, pois houve sensível diminuição do número de óbitos e de pacientes internados nas unidades de terapia intensiva dos hospitais.
Aliado a isso, vislumbra-se que a situação inicial de incerteza hoje não mais se apresenta. Diversos pesquisadores têm apresentado estudos sérios e aprofundados, que foram validados pela comunidade científica, acerca das formas de contágio da Covid-19.
A propósito, a pesquisa conduzida por Nicholas R. Jones e outros pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, com o título de “Two metres or one: what is the evidence for physical distancing in covid-19?” (Dois metros ou um: qual é a evidência de distanciamento físico em covid-19, na tradução livre), consigna que a contaminação está
diretamente atrelada à ambiência. Assim, os ambientes com ventilação natural apresentam menor potencial de contaminação do que aqueles com ventilação forçada. Do mesmo modo, ambientes com baixa densidade de ocupação tendem a ter menor proliferação do vírus do que
espaços com alta densidade (Disponível em<https://www.bmj.com/content/370/bmj.m3223>. Acesso em: 19 out. 2020).
Em sendo assim, a aplicação de medidas sanitárias, neste momento,
deve gradualmente se descolar do princípio da precaução e seguir o princípio da prevenção, também implicitamente previsto no art. 200 da Constituição Federal, até porque a humanidade terá de conviver com o vírus.
Com precisão, ensina Édis Milaré que “prevenção é substantivo do verbo
prevenir (do latim prae = antes e venire = vir, chegar), e significa ato ou efeito de anteciparse, chegar antes; induz uma conotação de generalidade, simples antecipação no tempo, é verdade, mas com intuito conhecido” (Direito do ambiente. 11. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2018).
Embora pareçam sinônimos, os princípios da precaução e da prevenção são distintos. A diferença substancial entre eles reside na certeza científica do risco. Se o risco é incerto, vigora o primeiro; ao revés, se o risco é conhecido, aplica-se o segundo. É o que afirma Édis Milaré quando escreve que, “de maneira sintética, podemos dizer que a
prevenção trata de riscos ou impactos já conhecidos pela ciência, ao passo que a precaução se destina a gerir riscos ou impactos desconhecidos. Em outros termos, enquanto a prevenção
trabalha com o risco certo, a precaução vai além e se preocupa com o risco incerto. Ou ainda, a prevenção se dá em relação ao perigo concreto, ao passo que a precaução envolve perigo abstrato” (Direito do ambiente. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018)
Dessarte, impende reconhecer que, doravante, a atuação dos órgãos de saúde no enfrentamento da pandemia deve considerar o princípio da prevenção, haja vista a possibilidade concreta de melhor visualização dos fatores de contágio do vírus e da estruturação dos serviços público e privados de saúde.
Sob outro enfoque, a exegese do ordenamento constitucional evidencia que a imposição das medidas sanitárias de cunho restritivo deve observar, dentre outros, o princípio (ou máxima) da razoabilidade engastado implicitamente no art. 5º, LIV, da Constituição Federal.
Segundo Wallace Paiva Martins Junior,
O princípio da razoabilidade orienta a ação estatal segundo cânones de isonomia, coerência lógica, racionalidade, razão, equidade, bom senso. […] Não se trata de mera racionalidade pela apuração da compatibilidade entre causa e efeito, mas, entre interesse e razões, ou seja, de aquilatar a lógica razoável, como assinala Diogo de Figueiredo Moreira Neto. […] Ora, o standard jurídico é justamente essa medida de razoabilidade (rule of reason) da oportunidade e da racionalidade, tanto da ação do legislador ordinário, como do administrador, como ainda dos juízes, ao interpretarem e aplicarem, cada um a seu modo, isto é, no exercício de suas funções, mediante atos específicos, as normas constitucionais e legais. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Tratado de direito administrativo: teoria geral e princípio do direito administrativo. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 542-543.
Da mesma maneira, pontua Carlos Roberto Siqueira Castro:
Atenta a essa forçosa contingência do legislador, a moderna teoria constitucional tende a exigir que as diferenciações normativas sejam razoáveis e racionais. Isto quer dizer que a norma classificatória não deve ser arbitrária, implausível ou caprichosa, devendo, ao revés,
operar como meio idôneo, hábil e necessário ao atingimento d finalidades constitucionalmente válidas. Para tanto, há de existir uma indispensável relação de congruência entre a classificação entre si e o fim a que ela se destina. Se tal relação de identidade entre meio e fim – means-end relationship, segundo a nomenclatura norteamericana
da norma classificatória não se fizer presente, de modo que a distinção jurídica resulte leviana e injustificada, padecerá ela do vício da arbitrariedade, consistente na falta de ‘razoabilidade’ e de ‘racionalidade’, vez que nem mesmo ao legislador legítimo, como
mandatário da soberania popular, é dado discriminar injustificadamente entre pessoas, bens e interesses na sociedade política. (CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal
e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 145).
Isso porque o poder discricionário da Administração Pública não é ilimitado, sujeitando-se à observância dos princípios engastados na Constitucional Federal, especialmente os da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art.37, caput). Além disso, o exercício do poder discricionário não está imune ao controle do
Poder Judiciário, que pode examinar o conteúdo do ato para verificar eventual existência de excesso.
Nas palavras de José Joaquim Gomes Canotilho,
Por outro lado, o exercício do poder pode não se destinar aos fins visados pela lei (desvio do poder discricionário ou utilização viciada). Num caso e noutro, o Estado de direito impõe a sua proibição e a possibilidade de controlo de exercício da discricionariedade.
[…]
Ainda, no plano constitucional, existem vinculações quanto ao exercício do poder discricionário com base no princípio da proibição do excesso.
[…]
O princípio do Estado de direito não tolera a autorização legal de ingerências administrativas sobre os cidadãos, sem delimitação do conteúdo, objecto, fim e medida do acto administrativo. Esta proibição de autorização em branco resultará também dos preceitos constitucionais quanto à limitação dos direitos fundamentais. Os limites são particularmente relevantes em relação ao princípio da igualdade.(CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito
constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Edições Almedina, 2003, p. 735).
Seguindo na mesma vertente, Luciano Ferreira Leite, citado por Carlos Roberto Siqueira Castro, pondera que
Sempre que as autoridades administrativas transbordem os limites da finalidade traçada no ordenamento jurídico, embora se esteja diante de atos emanados no exercício de faculdades discricionárias, terá a Administração invadido a esfera da ilegalidade, fazendo surgir, em
consequência, direito subjetivo em favor dos administrados, com o objetivo de obterem perante o Judiciário a invalidação daqueles atos. (CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 4. ed. Rio de Janeiro:Forense, 2006, p. 164-165).
Celso Antônio Bandeira de Mello também entende assim:
Não se imagine que a correção judicial baseada na violação do princípio da razoabilidade invade o “mérito” do ato administrativo, isto é, o campo de “liberdade” conferido pela lei à Administração para decidir -se segundo uma estimativa da situação e critérios de
conveniência e oportunidade. Tal não ocorre porque a sobredita “liberdade” é liberdade dentro da lei, vale dizer, segundo as possibilidades nela comportadas. Uma providência desarrazoada, consoante dito, não pode ser havida como comportada pela lei. Logo, é ilegal: é desbordante dos limites nela admitidos. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 34. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 112).
Nesse contexto, e considerando a incidência do princípio da prevenção sobre as medidas restritivas, possível concluir que a proibição do desenvolvimento das atividades presenciais de ensino de educação básica, extracurricular e de reforço pedagógico nas regiões
de saúde enquadradas nos níveis de risco gravíssimo e grave, instituída pela Portaria SES n. 592/2020, fere o princípio constitucional da razoabilidade.
Isso porque o estudo técnico realizado sob a coordenação dos médicos Fábio Jung e Wanderson Oliveira, e intitulado “Covid-19 e Reabertura das Escolas: Descrição da Evidência Científica – Impactos sobre a Pandemia Socioeconômicos e Educacionais”, traz importantes evidencias científicas de que:
• Susceptibilidade: crianças são significativamente menos suscetíveis à Covid-19, representando apenas 2% dos casos globalmente e 24% da população mundial
• Gravidade: a doença é menos agressiva do que a gripe (influenza) em crianças. Até 8/8 os EUA apresentavam 2,2 vezes menos óbitos por Covid comparado à influenza: 49 vs. 107 óbitos por influenza em crianças até 14 anos
• Transmissibilidade: a evidência nos locais onde houve reabertura mostra que crianças contribuem pouco para a cadeia de transmissão, mesmo quando frequentam a escola. (Disponível em:
<https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/legis/covid19/edu/volta_as_aulas/artigo_covid19_evidencia_cientifica_reabertura_escolas_wanderson_set2020.pdf> Acesso em: 19 out. 2020).
Da mesma forma, constam no site da Sociedade Brasileira de Pediatria as seguintes informações:
Com base nas evidências científicas atuais disponíveis, as infecç ões pelo COVID-19 parecem afetar as crianças com menos frequência e menos gravidade do que em adultos. Um estudo recente, publicado no início de março de 2020, sugere que as crianças são tão propensas a se
infectarem quanto os adultos, mas apresentam menossintomas ou risco de desenvolver doença grave.
A maioria das crianças infectadas pelo COVID-19, segundo os dados atuais, tem um contato familiar com diagnóstico da infecção. Das crianças infectadas na China, em 82% dos casos foi comprovado contato domiciliar. As crianças provavelmente não constituem um reservatório importante do vírus. (Disponível em: <https://www.sbp.com.br/especiais/pediatria-parafamilias/
doencas/infeccao-em-criancas-pelo-coronaviruscovid-19/>. Acesso em: 21 out. 2020).
Acresça-se, também, que um estudo publicado na revista científica norteamericana Pedriatrics conclui que a transmissão do vírus pelas crianças ocorre em taxa muito baixa, e que geralmente elas não apresentam complicações de maior gravidade quando infectadas:
De 68 crianças com COVID-19 confirmado internadas no Hospital Feminino e Infantil de Qingdao de 20 de janeiro a 27 de fevereiro de 2020, e com dados epidemiológicos completos, 65 (95,59%) pacientes eram HHCs de adultos previamente infectados. De 10 crianças
hospitalizadas fora de Wuhan, China, em apenas 1 foi possível a transmissão de criança para adulto, com base na cronologia dos sintomas. Da mesma forma, a transmissão do SARS-CoV-2 por crianças fora do ambiente doméstico parece incomum, embora as informações sejam limitadas. Em um estudo intrigante da França, descobriu-se que um menino de 9 anos com sintomas respiratórios associados à coinfecção com picornavírus, influenza A e SARS-CoV-2
expôs mais de 80 colegas em 3 escolas; nenhum contato secundário foi infectado, apesar das numerosas infecções de influenza nas escolas, sugerindo um ambiente propício à transmissão do vírus respiratório. Em New South Wales, Austrália, 9 alunos e 9 funcionários infectados
com SARS-CoV-2 em 15 escolas tiveram contato próximo com um total de 735 alunos e 128 funcionários. Apenas 2 infecções secundárias foram identificadas, nenhuma na equipe adulta; 1 aluno na escola primária foi potencialmente infectado por um membro da equipe e 1
aluno no ensino médio foi potencialmente infectado por exposição a 2 colegas de escola infectados.
Com base nesses dados, a transmissão do SARS-CoV-2 nas escolas pode ser menos importante na transmissão da comunidade do que inicialmente temido. Esta seria outra maneira pela qual o SARS-CoV-2 difere drasticamente da gripe, para a qual a transmissão escolar é reconhecida como um fator significativo de doença epidêmica e forma a base para a maioria das evidências sobre o fechamento de escolas como estratégia de saúde pública.
[…]
Quase 6 meses após o início da pandemia, as evidências acumuladas e a experiência coletiva argumentam que as crianças, especialmente as crianças em idade escolar, são vetores muito menos importantes da transmissão da SARS-CoV-2 do que os adultos. Portanto, deve-se
considerar seriamente as estratégias que permitem que as escolas permaneçam abertas, mesmo durante os períodos de disseminação do COVID-19. Ao fazê-lo, poderíamos minimizar os custos sociais, de desenvolvimento e de saúde potencialmente profundos e adversos que
nossos filhos continuarão a sofrer até que um tratamento ou vacina eficaz possa ser desenvolvido e distribuído ou, na falta disso, até atingirmos a imunidade coletiva. (COVID-19 Transmission and Children: The Child Is Not to Blame. Disponível em:<https://pediatrics.aappublications.org/content/146/2/e2020004879>. Acesso em: 19 out. 2020. Tradução nossa).
Como se observa, existem estudos científicos apontando que as crianças estão menos suscetíveis à Covid-19 e pouco contribuem na cadeia de transmissão quando inseridas no ambiente escolar, especialmente por que o risco de contaminação delas é maior no âmbito residencial pelo contato com familiares que podem estar positivados.
Não fosse o suficiente, o estudo “Covid-19 e Reabertura das Escolas: Descrição da Evidência Científica – Impactos sobre a Pandemia Socioeconômicos e Educacionais” indica que diversos Países da Europa – Alemanha, França, Portugal e Reino Unido retomaram as atividades presenciais de ensino sem o agravamento do número de óbitos.
Ademais, carece de comprovação científica a justificativa de que a permanência prolongada de crianças e adolescentes em ambiente escolar potencializa o risco de contaminação.
Conforme o estudo conduzido por Nicholas R. Jones, antes mencionado,
“embora seja amplamente assumido que a duração da exposição a uma pessoa com covid-19 influencia o risco de transmissão (estudos de rastreamento de contato, por exemplo, consideram limites de 5-15 minutos além dos quais o risco aumenta3334), não temos
conhecimento de estudos que quantificaram isso variável” (Disponível em:<https://www.bmj.com/content/370/bmj.m3223>. Acesso em: 19 out. 2020. Tradução nossa).
Existe, portanto, razoável certeza científica de que a permanência de crianças e adolescentes em ambiente escolar dotado de ventilação natural, desde que observados os protocolos sanitários, não contribui para o agravamento da pandemia.
De outra parte, o exame do quadro sinóptico acima traçado descortina que os órgãos técnicos de saúde liberaram, com restrições, o desenvolvimento das atividades de bares e restaurantes com atendimento no local, academias, shopping centers, galerias e
centros comerciais, supermercados, lojas de departamento, turismo, agências bancárias, profissionais autônomos, construção civil (Portaria n. 592/2020) e aulas de ensino superior e pós-graduação (Portarias SES ns. 447/2020 e 592/2020), em quaisquer dos níveis instituídos
pela Matriz de Avaliação de Risco Potencial Regional (gravíssimo, grave, alto e moderado).
Nessa direção, compreende-se que a proibição do desenvolvimento das
atividades presenciais de ensino de educação básica, extracurricular e de reforço pedagógico nas regiões de saúde enquadradas nos níveis de risco gravíssimo e grave fere o princípio da razoabilidade, nos prismas da isonomia e da finalidade.
A isonomia é golpeada no instante em que outras atividades com perigo epidemiológico similar ao ensino presencial da educação básica, extracurricular e de reforço pedagógico, foram liberadas nas regiões de saúde enquadradas nos níveis de risco gravíssimo e grave. Note-se que as atividades liberadas se desenvolvem em edifícios com ventilação natural onde diariamente circulam e permanecem inúmeras pessoas, tal como sucede no ambiente escolar.
Não há dúvida, portanto, de que a norma administrativa questionada viola a isonomia no viés do direito ao tratamento como igual. Conforme ensina Ronaldo Dworkin, emerge esse “[…] direito, não uma distribuição igual de algum bem ou oportunidade, mas o direito a igual consideração e respeito na decisão política sobre como tais bens e
oportunidades serão distribuídas” (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução: Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017, p. 420).
Ademais, o art. 3º, IV, da Lei n. 13.874/2019, que dispõe sobre a declaração de direitos de liberdade econômica, determina que o poder público deve dispensar tratamento isonômico a todas as atividades:
Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:
[…]
IV – receber tratamento isonômico de órgãos e de entidades da administração pública quanto ao exercício de atos de liberação da atividade econômica, hipótese em que o ato de liberação
estará vinculado aos mesmos critérios de interpretação adotados em decisões administrativas análogas anteriores, observado o disposto em regulamento;
Assim, manifesto que a proibição ofende a isonomia, pois, na dicção de Celso Antônio Bandeira de Mello,
se o tratamento diverso outorgado a uns for ‘justificável’, por existir uma ‘correlação lógica’ entre o ‘fator discrímen’ tomado em conta e o regramento que se lhe deu, a norma ou a conduta são compatíveis com o princípio da igualdade; se, pelo contrário, inexistir essa
relação de congruência lógica ou — o que ainda seria mais flagrante —se nem ao menos houvesse um fator de discrímen identificável, a norma ou conduta serão incompatíveis com o princípio da igualdade” (Princípio da isonomia: desequiparações proibidas e desequiparações permitidas. In Grandes Temas de Direito Administrativo. São Paulo:
Malheiros, 2009, p. 196)
A finalidade, que constitui requisito de validade do ato administrativo e critério de aferição da razoabilidade, é transgredida no instante em que a proibição do ensino presencial da educação básica, extracurricular e de reforço pedagógico, não serve mais para evitar a propagação da pandemia.
Como mencionado alhures, não existem evidências científicas de que a
permanência de crianças e adolescentes no ambiente escolar que conte com ventilação natural, desde que observados os protocolos sanitários, contribui para o agravamento da pandemia.
Portanto, como a finalidade das medidas sanitárias que importam na proibição de atividades está direcionada à contenção da pandemia, manifesto que o fim visado deixa de ser atendido quando o risco não mais se apresenta com maior gravidade ou relevância.
Nas palavras de Carlos Roberto Siqueira Castro, “o preceito normativo, nesse caso, soa irrazoável, irracional e por certo injusto, eis que em nada auxilia para a consecução de finalidades legislativas constitucionalmente válidas. Ao revés, a diferenciação jurídica carece de motivação idônea, restando sem alicerce de fundamentação capaz de autorizar o descrime legislativo. (CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 151).
Para arrematar, denuncia o estudo “Covid-19 e Reabertura das Escolas:
Descrição da Evidência Científica – Impactos sobre a Pandemia Socioeconômicos e Educacionais”, referido anteriormente, que:
• Vulnerabilidade: O fechamento das escolas oferece riscos irreversíveis à saúde das crianças, agravando condições psiquiátricas, comprometendo a segurança alimentar, aumentando a taxa de gravidez infantil, o número de abusos e maus tratos, uso de drogas e violência
• Desigualdade: crianças vulneráveis têm menos acesso à educação a distância de qualidade e sofrem mais com o fechamento de escolas; mulheres tem um comprometimento significativamente maior de sua atividade profissional, acentuando as já enormes desigualdades sociais e de gênero no Brasil.
• Impacto econômico: a manutenção do fechamento das escolas pode agravar a recessão econômica, com prejuízos correspondentes a até 1% do PIB. (Disponível em:<https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/legis/covid19/edu/volta_as_aulas/artigo_covid19_evidencia_cientifica_reabertura_escolas_wanderson_set2020.pdf> Acesso em: 19 out. 2020).
Consequentemente, a manutenção da proibição do ensino presencial
da educação básica, extracurricular e de reforço pedagógico, a par de não servir mais para evitar a propagação da pandemia, afeta negativamente a saúde mental das crianças e adolescentes, aumenta as desigualdades sociais entre os jovens e acentua a taxa de desemprego das mulheres pelo fato de, regra geral, suportarem ônus maior na criação dos filhos. Ou seja, o custo social da proibição é mais elevado do que o benefício sanitário visado.
Desse modo, desponta cristalino do caderno processual que a medida de
proibição de desenvolvimento das atividades presenciais de ensino de educação básica, extracurricular e de reforço pedagógico, na conjuntura atual, vulnera o princípio da razoabilidade.
Com propriedade, expressa Luís Roberto Barroso:
Em resumo sumário, o princípio da razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso); c) os custos superem os benefícios, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito). (BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 345).
De tudo o que foi dito ressumbra que a proibição de desenvolvimento das atividades presenciais de ensino de educação básica, extracurricular e de reforço pedagógico decretada com base no princípio da precaução, agora, deve ser transmudada para a de restrição, lastreada no princípio da prevenção, pois só assim se estará observando a adequação, a necessidade (redução do contato social) e a proporcionalidade (em sentido estrito).
Por esses mesmos fundamentos, entende-se que a determinação de retorno gradual e escalonado das crianças e adolescentes às escolas, iniciando pelos grupos com maior idade, prevista nas Portarias Conjuntas SES/SED ns. 750/2020 (art. 7º) e 778/2020 (art. 1º, § 3º, II), também ofende o princípio da razoabilidade.
É que o retorno das crianças em momento ulterior aos adolescentes não
contribuirá para que elas, permanecendo em casa, adquiriram um maior nível de consciência sobre a necessidade de cumprimento dos protocolos sanitários.
Além disso, é da sabença ordinária que os adolescentes, pela interação com os recursos tecnológicos e maior compreensão da situação atual, apresentam melhores condições para o ensino virtual, enquanto as crianças tendem a registrar maior dispersão e, com isso, pior aproveitamento escolar.
Dessa forma, mostra-se presente a probabilidade do direito invocado pela parte autora, porquanto demonstrado que a proibição do desenvolvimento das atividades presenciais da educação básica, extracurricular e de reforço pedagógico nos níveis gravíssimo
e grave da Matriz de Avaliação de Risco Potencial Regional, assim como a regra do retorno escalonado e gradativo, conforme a faixa etária dos alunos, afronta o princípio da razoabilidade.
A seu turno, o periculum in mora igualmente ressai manifesto, pois os prejuízos e os efeitos negativos da proibição da atividade presencial da educação básica, extracurricular e de reforço pedagógico se renovam a cada dia, não podendo a entrega da prestação jurisdicional aguardar o julgamento desta ação civil pública.
Não bastasse, o estudo científico anteriormente citado indica que a falta de retorno das atividades de ensino presencial oferece riscos irreversíveis à saúde mental das crianças e adolescentes, aumenta o grau de vulnerabilidade social e impõe ônus excessivo às mães.
No que tange à reversibilidade dos efeitos da concessão liminar da tutela
provisória, também se notabiliza possível, pois, acaso improcedente o pedido inicial, existe viável de retorno da situação ao status quo ante.
Ainda, necessário delimitar o alcance da tutela provisória para não se incorrer em ingerência indevida do Poder Judiciário na formulação da política pública de gestão da pandemia e, por consequência, ofensa ao princípio da divisão dos poderes (CF, art. 2º).
Isso porque o Supremo Tribunal Federal, no julgamento em conjunto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) ns. 6.421, 6.422, 6.424, 6.425, 6.427 e 6.428, que questionavam a Medida Provisória 966/2020 – que dispunha sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da covid-19
– conferiu a interpretação conforme e fixou as seguintes teses:
1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos. (rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 21.5.2020).
À vista disso, compete exclusivamente ao Estado de Santa Catarina, por meio de seus órgãos técnicos de saúde, definir as restrições e limitações cabíveis e estabelecer, em cada nível de risco potencial da Matriz de Avaliação de Risco Potencial Regional – gravíssimo, grave, alto e moderado -, o quantitativo de alunos por escola, turma ou turno, que podem retornar ao ensino presencial da educação básica, extracurricular e de reforço pedagógico, assim como fixar os protocolos sanitários a serem cumpridos, a exemplo das demais atividades já liberadas.
Fica vedada, no entanto, a adoção da regra do retorno escalonado e gradativo de acordo com a faixa etária dos alunos. Admite-se, contudo, a instituição de revezamento e de percentuais máximos de educandos, proporcionalmente ao nível de risco da região de saúde.
Para além, prudente consignar que o entendimento desenvolvido nesta
decisão não contraria e nem confronta com a ratio empregada no decisum proferido na Ação Civil Pública n. 5057977-49.2020.8.24.0023. Ao revés, simplesmente complementa aquela decisão, pois apenas determina, em homenagem aos princípios constitucionais, notadamente
o da razoabilidade, a adequação das regras sanitárias aos mesmos padrões de outras atividades semelhantes, sem, contudo, incursionar nos critérios técnico-científicos para a imposição das restrições. Ao fim e ao cabo, esta decisão preserva a competência constitucional concorrente dos Estados e Municípios para tratarem das questões de saúde (CF,
art. 23, II) e os efeitos do que foi decidido naquela outra Ação Civil Pública.
Finalmente, consigna-se que os efeitos desta decisão se submetem à vigência da Portaria SES n. 592/2020, com as alterações posteriores. Dessa maneira, eventual quadro de piora da pandemia que justifique a decretação de proibição de todos os serviços e atividades não essenciais (lockdown), como registrado no mês de março do corrente ano pela edição do Decreto estadual n. 515/2020, afetam a eficácia desta decisão.
Destarte, a concessão da tutela provisória, em parte, é medida que se impõe.
1. Isto posto, defiro parcialmente o pedido de tutela provisória deduzido nesta ação civil pública (CPC, art. 300 c/c Lei n. 7.347/1985, art. 12) para o fim de determinar ao Estado de Santa Catarina que, no prazo de 10 dias, promova a alteração dos instrumentos normativos vigentes: (i) afastando a proibição do ensino presencial da educação básica,
extracurricular e de reforço pedagógico nos níveis de risco potencial gravíssimo e grave da Matriz de Avaliação de Risco Potencial Regional, assim como a regra do retorno escalonado e gradativo dos alunos por faixa etária; e (ii) definindo as restrições e limitações cabíveis em cada nível de risco potencial da Matriz de Avaliação de Risco Potencial Regional e estabelecendo o quantitativo de alunos por escola, turma ou turno, que podem retornar ao ensino presencial da educação básica, extracurricular e de reforço pedagógico, e, também, os protocolos sanitários a serem cumpridos, a exemplo das demais atividades já liberadas.
O cumprimento desta decisão, que abrange apenas as escolas estaduais da rede particular de ensino por força da eficácia subjetiva inter partes, pode ser efetivado por meio de alteração da Portaria SES n. 592/2020 e das Portarias Conjunta SES/SED ns. 778/2020 e 792/2020, ou mediante a construção de nova normativa.
2. Comunique-se à Corregedoria-Geral da Justiça, na forma do item “b” da Circular CGJ n. 153/2020.
3. Dê-se ciência dos autos ao Ministério Público para os fins do art. 5º, § 2º, da Lei n. 7.347/1985, haja vista as escolas estaduais da rede pública de ensino não estarem abarcadas no objeto da lide.
4. Cite-se o Estado de Santa Catarina para o cumprimento desta decisão e para oferecer contestação, no prazo de 30 dias (CPC, art. 335, caput, c/c art. 183).
5. Apresentada a contestação, intime-se a parte autora para apresentar réplica, no prazo legal (CPC, art. 351 c/c art. 180).
6. Após, abra-se vista dos autos ao Ministério Público.
Florianópolis, data da assinatura digital
Fonte: Poder Judiciário – Justiça Estadual – Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. 2º Vara da Fazenda Pública da Comarca de Florianópolis. Ação Civil Pública nº 5070043-61.2020.8.24.0023